27.12.06

BRINDE

Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.

(Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio 1914-1935)




FAVA





Pois é, no café da minha zona também se conseguem estas pérolas!

23.12.06

BRINDE

Pelo sonho é que vamos

Pelo sonho é que vamos
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

Partimos. Vamos. Somos. (Sebastião da Gama)




FAVA

expo'98

"-você dá-me um cigarro?", disse a musa
de repente a meu lado. os cabelos escorriam água.
e a testa e as faces. toda ela. olhei-a interrogativo. "-é.

estou muito ruisselante. desculpe o galicismo".
e piscou-me o olho enquanto acendia o cigarro
no meu isqueiro lesto. a t-shirt encharcada

demorava-se nos seus contornos íntimos, acerava-lhe
os bicos dos peitos pelos meus olhos dentro.
rosetas de bronze húmido. enfim, suponho. os jeans e os

ténis deviam pesar imenso. tinha as ancas bem desenhadas.
expeliu uma baforada. o umbigo estava à mostra acima
da fivela do cinto. viu que eu olhava ainda. sorriu.

encolheu os ombros. apontou para a azinhaga das águas tumultuantes.
havia lá mais gente a espadanar sem ter tirado a roupa.
os pais, as mães, os querubins do lar.

tinha passado para este lado da imagem. estava ao pé de mim.
"foi ali", disse, "agora preciso de uma corrente de ar".
quando olhei, tinha desaparecido. as musas são assim,

lustrais, perladas, elásticas e jovens.
pedem-nos lume, dão-nos fumo e partem logo. ficam as
notas pessoais: expo. sol, água e vento. gazela do deserto.
(Vasco Graça Moura, Poesia 1997-2000)