7.4.07




É um final provisório, mas a ausência será longa. Meses...

3.4.07

BRINDE




Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

(Mário Cesariny, Pena Capital, 1957)





FAVA


Recebi uma vez um mail com uma lista de nomes portugueses bem engraçados e outra lista de nomes brasileiros ainda mais engraçados (uns até mesmo completamente ridículos). É certo que me diverti, mas fiquei a pensar se existiria, de facto, gente que se chamasse assim! Hoje tenho quase a certeza de que aquele mail talvez não fosse criação de alguma cabeça fantasiosa e com um extraordinário sentido de humor. Tenho até pena de já não saber dele.

Há algum tempo, decidi investigar no terreno. Fui folheando a Lista Telefónica Margem Sul 2003/04 e, na verdade, passei ali uma boa hora de gargalhadas. Eu tinha de tirar isto a limpo! Não é por desrespeito de modo nenhum por estas pessoas, mas não vou mais conseguir manter esta lista apenas para mim (já a guardo há alguns anos, como podem ver).

Abaixo segue o rol das graças (em duplo sentido) destes senhores, acompanhado pelos números de páginas onde cada nome figura (que é para dar maior credibilidade):


António José Cagaita (69)

Celeste Céu (477)

Gertrudes Domingas Conhita (318)

Jean Alexandre Testagrossa (220)

Joana Broa Calhota (469)

João Batista Papafina (544)

Jorge Pila Zé-Zé (630)

José Frasco Queimado (555)

José Simões Cagica (69)

Jovita Quitéria Azevedo (460)

Ludovina Maria Penso (547)

Manuel Campaniço Isqueiro (128)

Manuel Vicente Borda d’Água (311)

Maria Alzira Penica (547)

Maria Benvinda Pendrelica (281)

Maria Silva Cagarelho (69)

Miguel Zonga Zonga (363)

Norberto Carneiro Cabrito (468)

Samuel Fontes Palhaço (280)

27.3.07




BRINDE


Canção

Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!

Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De não a mostrar a ninguém!

(Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio 1914 – 1935)





FAVA




Ah!... Que pena!... A promoção do café queimado já deve ter acabado...

23.3.07


(La persistencia de la memoria, Salvador Dalí, 1931,
óleo sobre tela, Museu de Arte Moderna, Nova Iorque)


BRINDE


(…)
Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preenche todas as tuas horas! Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguirás depender menos do dia de amanhã. De adiamento em adiamento, a vida vai-se passando.
Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso. (…)

(Séneca, Cartas a Lucílio, I, 1)





FAVA


Arqueologia História Possível

condenado das leis e sem
outra defesa que os lábios emudeceu subitamente.
vendido escravo pró Brasil, o Pe. A.V.
o iluminou na fé cristã & misericórdia.
José Ignacio Pombo: injusto también y bárbaro el derecho
que se cobra en cada venta de los escravos.
Es un derecho sobre los hombres.
Mas guardou (hoje o sabemos) crenças
selvagens & a impiedade natural das origens,
alheio à salvação espiritual e progresso na via do culto.
y él grava también
sobre la agricultura,
os ombros tremiam-lhe por dentro devagar. Fugido
em novembro dois, de 1804
& entregue a estas autoridades cinco meses passados
& cortadas as mãos em culpa de furto,
morte, e hábitos (dizem) viciosos que uma missão
não extirpou completamente,
habitava em comunhão carnal contra natura,
adorando ídolos, dado a bruxedo & feitiçaria.
Los 38800 pesos producto de novillos, y
mulas vendidas en Jamayca, reducido a
negros comprándolos a 215 pesos
dan…………………………….152
Agravado de conhecedor dos princípios morais
& catecismo, & civilização, & instruído
no conhecimento da língua e costumes,
ajudado que fora pelo Pe. A.V. e outros
no caminha da Redempção;
será obligación precisa,
y personal de los Curas, aplicar todos los dias festivos
la Misa, por el pueblo, explicarle el evangeglio
antes de esta, y la doctrina cristiana por la tarde
& com reconforto das unções Xtãs
foi decepado em Abril 20, de 1805 depois
de lhe cortadas as regiões
por exemplo maior que guardem
as populações & extirpe costumes bárbaros
& incitamento à fuga.
(tremiam-lhe
os ombros ao de leve, por dentro.
Levava no peito uma medalha redonda de cobre;
ferido nas costas de uma bala rés-vés.
Estando o sol mto forte & o tempo húmido
apodreceu rapidamente o corpo).
Por derechos de marca de 263 negros
a 40 pesos cada uno…………10520.
Por 6% de muertos, y gastos sobre
los 71070 pesos en total……4260.
Producto líquido de los negros………56230.
Tremiam-lhe os ombros porque tinha medo
& sinais das estrelas mau presságio, & vira
mortos os companheiros antes de ser preso,
& estando sozinho
lhe parecia a morte mto difícil.
(ao de leve, como
por dentro. E ao ser castrado
abriu a boca como se falando, como
se fora gritar, mas não se lhe ouviu voz,
enquanto cerrava os olhos %& uma lágrima
escura lhe escorria o suor dos lábios)
Logramos la fortuna
de tener un Soberano,
Padre verdadero
y amante de sus vasallos,
foi a enterrar no campo maior por
despesa ordinária,
(ao de leve)
& os filhos, que tivera, entregues
ao cuidado de seu legítimo
proprietário.
Si a estos se agregan los derechos de alcabala de venta, y
reventa en estos negros; el aumento de frutos, y
consumos, que dan, subirán mucho las utilidades, que produce
esta negociación, al Rey, a los interesados y a la Província.

(António Franco Alexandre, Poemas)

17.3.07




BRINDE


O Noivado do Sepulcro

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

(Soares dos Passos, O Noivado do Sepulcro)





FAVA


Das Coisas que Competem aos Poetas

Nas terras onde os sinos andam pelas ruas
há horas surdas sós e sem cuidados
há mar condicionado ao possível verão
e vendem-se manhãs e mães por três ideias
Nas terras onde a música é o fogo de artifício
a camioneta curva a carga sob os plátanos
e à sombra dos lacrimejantes carros
o gato dorme a trepadeira sobe
o soba grita nunca ninguém sabe
a erva cresce e as crianças morrem
o mar aceita chão a mão do sol
Que plural deplorável o da magna agência mogno
E nas tílias há riscos dos vestidos de retintas raparigas
e o dente resistente número quarenta cheira a pepsodent

(Ruy Belo, Todos os Poemas)

13.3.07




BRINDE


(…)
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
(…)

(Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos, A Espantosa realidade das coisas)





FAVA


Um Prato de Sopa

Um prato de sopa um humilde prato de sopa
comovo-me ao vê-lo no dia de festa
e entro dentro da sopa
e sou comido por mim próprio com lágrimas nos olhos

(Ruy Belo, Todos os Poemas)

7.3.07



BRINDE


Navio Naufragado

Vinha dum mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves de cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos dos videntes.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I)





FAVA


Tríptico Nómada

III — Veneza, Travessia

porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
suba a cà foscari! os dentes
ácidos de sementes quebradas, il manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros. dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios. dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um resto de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/ spaghetti.
mrs. stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa no pássaro. miragem. quase noite.
vago, de hashish, o acre
minuto de falar. dizia, «ninguém,
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece, dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento. a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas. Invento. na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. in
vento. manhãs, quando se parte, de dentro
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue,
& as mãos espalhavam a pele, cobriam
cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia a bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia, «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada. e por dentro
da luz, a seiva do calcário. miragem. invento.
o sol partido em dois. azul. e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo; dizia «o mar,
algures os astros,
& a boca amealhava o ouro ardido.
invento. o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas. horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
uma manhã, invento, dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos,
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,
& os aviões roncavam sobre a areia.
subindo o céu de vidro,
a casa desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marcos.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas. um fio cortado a vento.
inclinado nos olhos, olhava. inclinado nas unhas,
olhava, dizia «amanhece,
porque amanhecia.

(António Franco Alexandre, Poemas)

3.3.07



BRINDE


Paisagem

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I)





FAVA


Tríptico Nómada

II – Paris, Sumário

1
paris, o ar, a traqueia
vertida,
dormir em pé nos bancos
(lénine) do parque ratazana
: dormir pelo sofá
(freud) do Hotel do Brasil ao 6°
andar sem as-
censor
de olhar tão lentamente a pedra, o rio, a folha,
que o fio ao dissolver-se trans
pareça
a pura forma de ar, íris, parure

2
paris, o desemprego. açorda de gente em pasmo,
cenoura matinal & mal cozida.
acertar a samarra ao apito do campo
(campo)
onde bois, esterco, o ventre hospitaleiro,
a machada de cobre à entrada das alfândegas.
passo a mão no teu rosto repensando
que nos resta comer a mão do céu
ou, microscópica, a vaca do deleuze.

3
paris, astrologia. antes da lei: a regra
de estar juntos no mar interno à veia:
diz-se (lei
bniz) do compossível.
sofre, traqueia, o golpe
das dedadas no chumbo:
esperando Saturno no quadrante de Vé
nus.

4
volta, paris, à terra prometida: jerus
além de garra
fão & diner’s club:
que o fio ao dividir-se
transpareça
em sua sombra a pedra, a folha,
o rio.

5
paris, bosque de vin
scènes dez da manhã:
de tal i qual no brr
aço, & no pinheiro
cartazes délecê.

6
asa sem paz (aro), migrante: de empire
state no bolso azul de cheviote,
édipo duro dura, assobiando
madra-goa em chicago, bar-d(o)
e máfia.

paris, ocasional: pele da pele, e-
terna, acaso um salto:
a dança: íris de riso, um rio.

(António Franco Alexandre, Poemas)

27.2.07




BRINDE


Às Vezes

Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.

Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I)





FAVA


Tríptico Nómada

I – Nova Iorque, Um

1
outras manhãs
molha o papel na cinza dizendo: «os meus,
ninguém que adivinhasse a mesa rasgada, as meias
balões verdes de areia pesando ao contrário dos olhos ao
pénis, demasia fácil.

2
descruzando o mostrador, para passar
o lápis partido a meio da boca
«seios, igualmente desertos
na quadragésima segunda rua
anos: ardendo
as botas, de cavalaria

3
não tocamos na vaca
lenço preso à narina mais branca
o cuspo manchou todas as vitrinas
sentando-se, que o sangue apodrece
o arame dos testículos
apareceu por acidente adormecido
na janela com chuva

4
ou que não gira, mas
uma palpitação colada aos seios da cama
o polícia negro maneja a ventoinha sobre
retratos, uma moldura mostrando
a lápis, assinado rembrandt.

5
alimentando-se, outras
de aço fundido atrás dos anjos
desabotoando as rosas no urinol azul
helicóptero justamente às 5 e trinta apertando
a narina mais larga contra o peito
dos arranha-céus
«a boca,
urna pedra acaba de cair muito mais tarde.

6
por lentidão ou por ser
o olho da vaca acende e apaga lápis
aparados no televisor uniformernente liso

o perfeito animal
entre as coxas do peixe suor branco
alheio à solidão.

7
por times square o tempo de virar
uma narina ao lado do silêncio
alisando as verrugas molha na cinza
o pénis da hora
na vitrina inconsolável presidente violeta
«são sensíveis,
animal perfeito, ninguém que descubra
o enxame inclinado nas axilas

8
a boca abre-se em duas cores com
plementares acrílicas ligeiramente so
brepostas;
a chávena na ponta do braço direito a
vança hesitando e o líq
uido quente enfia no buraco da carne
uma lufada de casas intermitentes
«pequeno almoço em tiffany’s».

9
apenas o ar, dedos
enfiados no anel manejando o arame visível, até
as fezes do néon finalmente dissolvem
penumbra, o cacho «meramente,
aperta nos lábios uma saliva incómoda

10
espalhando o alcatrão por sobre a zona
entre as nádegas o cuspo mais facilmente seca
a viúva que o gelo conservou sem perca
«ao frio,
outras
agarrando nos dentes a pedra portátil
espera que o mundo caminhe ao contrário
em direcção ao esperma deixado
vagina sem mãe.

(António Franco Alexandre, Poemas)

23.2.07






















(The Fall of the Giants, Giulio Romano, 1526-34, Fresco, Palazzo del Tè, Mântua)



BRINDE


Primeiro
Ulisses

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

(Fernando Pessoa, Mensagem, Os Castelos)





FAVA


Na Praia

Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar
senhoras que com tanta dignidade
à hora que o calor mais apertar
coroadas de graça e majestade
entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?

(Ruy Belo, Todos os Poemas)

17.2.07





















BRINDE


Nuvens correndo num rio

Nuvens correndo num rio
Quem sabe onde vão parar?
Fantasma do meu navio
Não corras, vai devagar!

Vais por caminhos de bruma
Que são caminhos de olvido.
Não queiras, ó meu navio,
Ser um navio perdido.

Sonhos içados ao vento
Querem estrelas varejar!
Velas do meu pensamento
Aonde me quereis levar?

Não corras, ó meu navio
Navega mais devagar,
Que nuvens correndo em rio,
Quem sabe onde vão parar?

Que este destino em que venho
É uma troça tão triste;
Um navio que não tenho
Num rio que não existe.

(Natália Correia)





FAVA


A minha palmeira é muito porreira eu sei
Mas no meu deserto tu foste o oásis que achei
Tu ficas louquinha quando tiro a casca à banana
Ficas tão tontinha que a tua cauda abana.

Refrão: Como o macaco gosta de banana eu gosto de ti (de banaaaaanaaa)
Escondi um cacho debaixo da cama e comi comi (de banaaaanaaa)
Minha macaca gira e bacana
O teu focinho é que não me engana
Pois se a macaca gosta de banana tu gostas de mim
Como o macaco gosta de banana eu gosto de tiiiiii

Um orangotango transformou um tango num rock
É a nova moda que põe Portugal em amok
Quem foi ao ataque foi o chimpanzé e o saguini
Minha macaquinha, estão apanhadinhos por tiiii, iiii, iiii

(José Cid, Como o Macaco Gosta de Banana/Trouxe Comigo Ilusões - Single, Orfeu, 1982)



Eu nem sei como fui capaz! Estava até para ilustrar esta "fava", mas sinceramente preferi não baixar o nível. Podeis ver neste blog a imagem escolhida (basta só andar um pouco para baixo).
Não me consegui, de forma alguma, inibir de apresentar pelo menos o caminho para tal tesouro.

13.2.07

BRINDE


(…)
Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! –
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
(…)
(Álvaro de Campos, Ode Triunfal, Ficções do Interlúdio, 1914-1935)





FAVA


Zoologia: A Jibóia

Quando a perna do homem entrou
na boca da jibóia, o homem
tornou-se parte da jibóia. O sangue
da perna e as secreções da jibóia
tornaram-se parte do mesmo suco
digestivo; e quando o homem, com
um golpe de faca, cortou
o pescoço da jibóia, cortou ao
mesmo tempo a sua própria perna. Então,
coxeando, o homem entrou na aldeia:
branco como a pele da jibóia,
engoliu aves, cabritos,
e até uma criança distraída… Depois,
estendido na praça da aldeia,
esperou que outros homens lhe cortassem
a barriga, com uma faca: e viu
sair de dentro de si
as galinhas a cacarejar, os patos
a grasnar, e uma criança
estremunhada
a chorar.

(Nuno Júdice, A Fonte da Vida, 1997)

7.2.07

BRINDE


Mitologia

Os deuses, noutros tempos, eram nossos
Porque entre nós amavam. Afrodite
Ao pastor se entregava sob os ramos
Que os ciúmes de Hefesto iludiam.

Da plumagem do cisne as mãos de Leda,
O seu peito mortal, o seu regaço,
A semente de Zeus, dóceis, colhiam.

Entre o céu e a terra, presidindo
Aos amores de humanos e divinos,
O sorriso de Apolo refulgia.

Quando castos os deuses se tornaram,
O grande Pã morreu, e órfãos dele,
Os homens não souberam e pecaram.

(José Saramago, Os Poemas Possíveis)





FAVA


aquiles e pentesileia

o filme desdobra-se entre o relâmpago da morte
e o sussurro do mar da cor do vinho.
talvez seja o instante da paixão que sangra no destino
e sempre nele as vozes se entrelaçam.

aquiles e pentesileia comandam gangs rivais
nas suas harley davidson reluzentes, vestidos
de couro preto e capacetes de viseira.
empinam as motos ao longo das dunas ondulantes

como cavalos tresloucados entre os sons
pesados dos metais, resfolegando.
ah, como se ameaçam de morte, enquanto
o mar se torna cor de tinta e eles rasgam noite

no eriçar dos faróis, no lampejar dos cromados,
nos surdos impropérios a desoras.
traz os ventos cruéis e sacudidos
o ronco musculado dos motores,

no cheiro a gasolina. Os olhos traçam
a fria precisão da trajectória. é quando
aquiles derruba pentesileia, esfaqueando-a
com um raio de lua na navalha.

um rap sacode o coração oculto
da treva nos pinhais. uivam ao longe
sereias da polícia e ambulâncias.
as amazonas estão petrificadas.

desmontam todos e aquiles aproxima-se
e num esgar de escárnio arranca o capacete
ao corpo inerte envolto em seus gemidos,
para lhe ver a face, e um e outro

então se reconhecem de repente,
ele e pentesileia, lá onde se misturam
o sangue e a areia grossa das derrapagens.
é quando a dor dos cactos se recorta

nas pedras do silêncio. agora a lua
impassível desinventa-os na berma
e eles beijam-se transtornadamente
entre as duas e as três da madrugada,

súbitos e devorantes, numa aurora
de luto e solidão. Porque eu os vi,
ainda os vejo no esvoaçar das luzes
pardas do fim da noite e as dunas se encrespavam.

a morte lambe os ferros retorcidos,
sorvendo gota a gota a cor do rosto,
mas tentam dilatar cada segundo.
porque os vejo quando o tempo e o espaço

se condoem na sua curvatura e são
um espasmo apenas de memória e música,
de cinza e de soluços lancinantes,
de apertos no coração e vozes apagadas,

porque deixam de ser no momento em que estão
a ser o que os transforma, refaz, identifica,
espelham-se nos olhos um do outro
e assim inventam uma outra eternidade.

(Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000)
















Penthesilea, Peter Stein

3.2.07

BRINDE


(…)
Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo…
(…)

(Fernando Pessoa, Impressões do Crepúsculo, II, 29.III.1913,
Ficções do Interlúdio 1914-1935)




(…)
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada o que se pareça com isso devia ser o sentido da vida…
(…)

(Fernando Pessoa, A Casa Branca Nau Preta,
Ficções do Interlúdio 1914-1935)




(…)
Pouco usamos do pouco que mal temos.
(…)

(Ricardo Reis, Odes, XX,
Ficções do Interlúdio 1914-1935)




(…)
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

(…)

(Alberto Caeiro, O guardador de Rebanhos, 1911-1912, I,
Ficções do Interlúdio 1914-1935)




(…)
Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para qual fui injusto – eu, que as vou comer a ambas?

(Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos 1913-1915, Ontem o pregador de verdades dele,
Ficções do Interlúdio 1914-1935)





FAVA

Esta pérola chegou-me já há algum tempo por e-mail. Como achei que era das raras, decidi guardar; daria uma bela jóia um dia mais tarde :) E aqui está ela!



27.1.07

BRINDE… (…a dobrar: as mulheres de Cesário)


Frígida

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.

Admiro-a. A sua longa e plácida estatura
Expõe a majestade austera dos Invernos.
Não cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.

Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,
Numa das mãos franzindo um lenço de cambraia!...
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!

Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei duma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!

Pudesse-me eu prostrar, num meditado impulso,
Ó gélida mulher bizarramente estranha,
E trémulo depor os lábios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!...

Cintila ao seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo, a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jibóias
E a marcha demorada e muda dum fantasma.

Metálica visão que Charles Baudelaire
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Permita que eu lhe adule a distinção que fere,
As curvas da magreza e o lustre dos adornos!

Desliza como um astro, um astro que declina;
Tão descansada e firme é que me desvaria,
E tem a lentidão duma corveta fina
Que nobremente vá num mar de calmaria.

Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!

O seu vagar oculta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.

Porém, não arderei aos seus contactos frios,
E não me enroscará nos serpentinos braços:
Receio suportar febrões e calafrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.

E se uma vez me abrisse o colo transparente,
E me osculasse, enfim, flexível e submissa,
Eu julgaria ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!



Lúbrica

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um papel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

(Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde)





FAVA












Não faltará aqui uma vírgula no slogan, entre o não e o obrigada? Ou este cartaz também é, de certa forma, a favor do sim?

23.1.07














BRINDE


Sobre a areia os vestígios deixados pelas ondas agrestes...

Conchas partidas e ocas,

Búzios de curvas solitários,

Estrelas do mar vermelhas e partidas,

Pedras coloridas e multiformes.

São como pegadas difusas a caminho do mar, sem maré que as leve.


(Ariadne, 04.02.2006.
Porque alguns poetas desconhecidos merecem mesmo ser lidos...)





FAVA


aliás: uma homenagem

aliás, estava uma cómoda d. josé mal estacionada
numa paragem de autocarro
das avenidas novas. os táxis, os automóveis particulares,
os próprios autocarros, desviavam-se respeitosamente
do abaulado objecto. as pessoas não ligavam
grande importância àquilo.
nenhum arrumador intonso e
semidrogado ousou riscar-lhe o polimento
por falta de gorjeta. e nenhum
polícia de giro entalou o papelinho da multa
entre uma gaveta e o seu encaixe. a polícia
com este governo civilizou-se imenso:
passou a saber o que é uma cómoda d. josé,
a não interferir na decoração dos exteriores urbanos
e sobretudo a compreender que uma peça de pau-santo,
volumosamente acetinada, bem brunida e sem rodas,
não pode deslocar-se facilmente para a berma,
onde aliás ficaria muito melhor.

mas a situação era estranha, mesmo
muito estranha: ainda se se tratasse
de uma credência chippendale no terreiro do
paço, de uma aparador d. maria na praça
do município, até de uma chaise-longue,
de uma chaise-longue
com madame récamier ou sem madame récamier
refestelada em rosa e cinza,
na estufa fria, as coisas seriam de uma evidência
bem mais clara, aliás, basta pensar que a estufa
fria tem luminosidades vegetais e sombras
pardas e castanhas pondo malhas
imponderáveis na atmosfera,
como no quadro de jaques-louis david, deixando
intacta a personagem.
mas na verdade,
nem sequer estava ali um contador com os seus
caprichos de ebúrneo entalhe e enxamblamento,
testemunho indo-português de um passado
mais recuado e convenhamos, bem mais glorioso,
enfim, nenhuma coisa de plausível normalidade,
digamos, médio-burguesa e ornamental.

por isso um jornalista dos mais típicos, sem
aliás contestar a situação, aliás benéfica para as avenidas
novas e ipso facto para a cidade, lembrou-se
de telefonar a josé-augusto frança perguntando
que razões haveria
para aquela insólita presença. “ - muito simples”, respondeu
o mestre, cruzando a cintilação racional
da arquitectura iluminista e a sua própria trajectória
pelo surrealismo com um simpático sorriso:
“fica provado que,
mesmo fora da baixa,
lisboa é pombalina”.

(Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000, Poemas com Pessoas)

17.1.07


BRINDE


Cristo-Báquico

Nasceu na terra como as fontes
misturado com os animais
que irreprimíveis pelos montes
se dão nas luas casuais.

Do bicho à boca
da boca à fome
dos animais que os bichos comem,
subiu mais alto. Até ao homem
com fome e sede no seu caminho.
E ele era o pão. E ele era o vinho.
Porque era a taça servindo o sangue
que lhe batia no coração.

Da sua carne brotou
em flor Maria Madalena
e amando-a nela se mostrou
ele mesmo em beleza de fêmea.

A impiedade o esmagou
com o peso da divindade;
Preço que aos vendilhões pagou
para ser príncipe de outra verdade.

Os espinhos da rosa mais nocturna
em seu corpo de lírio se cravaram.
E os dedos da estrela mais soturna
a fronte pura lhe enodoaram.
Mas espinhos e dedos perfumou
com o cheiro que da terra trazia
porque na carne crucificada
era Diónisos que ria.

(Natália Correia, Poemas, 1955)





FAVA


Cópula

No prado, onde as vacas, imóveis,
esperam a passagem do comboio, ouve-se um ruído
de ramagens fustigadas pelo vento. Não sei se
é o outono que chega, ou se o verão ainda resiste
à chegada da breve estação. No entanto,
o comboio demora-se; e a vaca que não quis
esperar parou no meio da linha, com uma raiz
metafísica que se meteu na terra e a prendeu, impedin-
do-a de fugir à investida da locomotiva. (O
resultado, meses depois, foi um bezerro
a vapor).

(Nuno Júdice, A Fonte da Vida, 1997)

13.1.07


BRINDE


Padrão

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

(Fernando Pessoa, Mensagem)





FAVA


A menstruação quando na cidade passava
o ar. As raparigas respirando,
comendo figos - e a menstruação quando na cidade
corria o tempo pelo ar.
Eram cravos na neve. As raparigas
riam, gritavam - e as figueiras soprando de dentro
os figos, com seus pulmões de esponja
branca. E as raparigas
comiam cravos pelo ar.
E elas riam na neve e gritavam: era
o tempo da menstruação.

As maçãs resvalavam na casa.
Alguém falava: neve. A noite vinha
partir a cabeça das estátuas, e as maçãs
resvalavam no telhado – alguém
falava: sangue.
Na casa, elas riam - e a menstruação
corria pelas cavernas brancas das esponjas,
e partiam-se as cabeças das estátuas.
Cravos - era alguém que falava assim.
E as raparigas respirando, comendo
figos na neve.
Alguém falava: maçãs. E era o tempo.

O sangue escorria dos pescoços de granito,
a criança abatia a boca negra
sobre a neve nos figos - e elas gritavam
na sombra da casa.
Alguém falava: sangue, tempo.

As figueiras sopravam no ar que
corria, as máquinas amavam. E um peixe
percorrendo, como uma antiga palavra
sensível, a página desse amor.
E alguém falava: é a neve.
As raparigas riam dentro da menstruação,
comendo neve. As cabeças das
estátuas estavam cheias de cravos,
e as crianças abatiam a boca negra sobre
os gritos. A noite vinha pelo ar,
na sombra resvalavam as maçãs.
E era o tempo.
E elas riam no ar, comendo
a noite,
alimentando-se de figos e de neve.
E alguém falava: crianças.
E a menstruação escorria em silêncio –
na noite, na neve –
espremida das esponjas brancas, lá na noite
das raparigas
que riam na sombra da casa, resvalando,
comendo cravos. E alguém falava:
é um peixe percorrendo a página de um amor
antigo. E as raparigas
gritavam.

As vacas então espreitando,
e nos focinhos consumia-se o lume em silêncio.
Pelas janelas os violinos
passavam pelo ar. E a menstruação nas raparigas
escorria pela sombra, e elas
gritavam e comiam areia. Alguém falava:
fogo. E as vacas passavam pelos violinos.
E as janelas em silêncio escorriam
o seu fogo. E as admiráveis
raparigas cantavam a sua canção, como
uma palavra antiga escorrendo
numa página pela neve,
coroada de figos. E no fogo as crianças
eram tocadas pelo tempo da menstruação.

Alimentavam-se apenas de figos e de areia.
E pelo tempo fora,
riam - e a neve cobria a sua página de tempo,
e as vacas resvalavam na sombra.
Em silêncio o seu lume escorria das esponjas.
Partiam-se as cabeças dos violinos.
As raparigas, cantando as suas crianças,
comiam figos.
A noite comia areia.
E eram cravos nas cavernas brancas.
Menstruação - falava alguém. O ar passava –
e pela noite, em silêncio,

a menstruação escorria pela neve.

(Herberto Helder, A Máquina Lírica, 1964)

7.1.07



BRINDE


Timeu - Imitando a figura do todo, que é redonda, prenderam os circuitos divinos, que são dois, dentro de um corpo esférico, aquele a que agora chamamos cabeça, que é a parte mais divina, que domina sobre todas as partes que há em nós; e à qual os deuses deram a totalidade do corpo, como seu servo, unindo-a a ele, prevendo que ela participasse em todos os movimentos que viesse a haver. E assim, a fim de que não andasse a rolar sobre a terra, que está cheia de elevações e depressões de todo o género, com dificuldade em trepar a umas e em sair de outras, deram-lhe o corpo como veículo e meio de adequada deslocação. Daí que o corpo se tenha tornado comprido, tendo crescido nele quatro membros extensíveis e flexíveis, produzidos pelo deus com vista à deslocação; por forma a que, servindo-se deles para agarrar e se apoiar, se lhe tornasse possível deslocar-se por toda a parte, transportando ao alto a morada daquilo que há em nós de mais divino e sagrado.

(Platão, Timeu, 44d-e;
trad. Maria José Figueiredo, Instituto Piaget, 2004)






FAVA


Como se uma estrela hidráulica arrebatada das poças,
Tu sim deslumbras, Por coroação:
por regiões activas de levantamento:
por azougue da cabeça,
Brilhas pela testa acima,
Ceptro: potência – ah sempre que o chão crepita
dos charcos de ouro,
E no corpo trancado a veias
e nervos: o sangue que se afunda e faz tremer
tudo, Tocas
com um arrepio de unha a unha
o mundo, Pontada
que te abre e aumenta
ou
- onde se um troço dessa massa
intestina: e como respirada: às queimaduras
primitivas – Boca:
sexo: viveza
das tripas: uma glândula que te move
ao centro, Amadureces como um ovo,
Na traça carnal: todo
com um golpe com muita força para dentro

(Herberto Helder, A cabeça entre as mãos, 1982)

3.1.07



BRINDE

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes,
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

(Ricardo Reis, Odes e outros poemas, 136, 14.2.1933)





FAVA

água do luso

em criança eu bebia água do luso,
quando não, “- só se bebe água fervida”,
recomendavam os meus pais. escuso
de misturar groselha hoje à bebida.

a garrafa de quarto era vendida
sem ter forma de rosca ou parafuso,
sem ser de frouxo plástico, polida,
de vidro grosso já com marcas de uso.

vejo um nítido foco no seu halo
Intenso e luminoso e o copo de água
sobre o tampo da mesa, concentrando

algum raio de sol a atravessá-lo
como lente de aumento, há muito. trago-a
a queimar o papel, de vez em quando.

(Vasco Graça Moura, Poesia 1997 - 2000)

27.12.06

BRINDE

Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.

(Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio 1914-1935)




FAVA





Pois é, no café da minha zona também se conseguem estas pérolas!

23.12.06

BRINDE

Pelo sonho é que vamos

Pelo sonho é que vamos
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

Partimos. Vamos. Somos. (Sebastião da Gama)




FAVA

expo'98

"-você dá-me um cigarro?", disse a musa
de repente a meu lado. os cabelos escorriam água.
e a testa e as faces. toda ela. olhei-a interrogativo. "-é.

estou muito ruisselante. desculpe o galicismo".
e piscou-me o olho enquanto acendia o cigarro
no meu isqueiro lesto. a t-shirt encharcada

demorava-se nos seus contornos íntimos, acerava-lhe
os bicos dos peitos pelos meus olhos dentro.
rosetas de bronze húmido. enfim, suponho. os jeans e os

ténis deviam pesar imenso. tinha as ancas bem desenhadas.
expeliu uma baforada. o umbigo estava à mostra acima
da fivela do cinto. viu que eu olhava ainda. sorriu.

encolheu os ombros. apontou para a azinhaga das águas tumultuantes.
havia lá mais gente a espadanar sem ter tirado a roupa.
os pais, as mães, os querubins do lar.

tinha passado para este lado da imagem. estava ao pé de mim.
"foi ali", disse, "agora preciso de uma corrente de ar".
quando olhei, tinha desaparecido. as musas são assim,

lustrais, perladas, elásticas e jovens.
pedem-nos lume, dão-nos fumo e partem logo. ficam as
notas pessoais: expo. sol, água e vento. gazela do deserto.
(Vasco Graça Moura, Poesia 1997-2000)