23.1.07














BRINDE


Sobre a areia os vestígios deixados pelas ondas agrestes...

Conchas partidas e ocas,

Búzios de curvas solitários,

Estrelas do mar vermelhas e partidas,

Pedras coloridas e multiformes.

São como pegadas difusas a caminho do mar, sem maré que as leve.


(Ariadne, 04.02.2006.
Porque alguns poetas desconhecidos merecem mesmo ser lidos...)





FAVA


aliás: uma homenagem

aliás, estava uma cómoda d. josé mal estacionada
numa paragem de autocarro
das avenidas novas. os táxis, os automóveis particulares,
os próprios autocarros, desviavam-se respeitosamente
do abaulado objecto. as pessoas não ligavam
grande importância àquilo.
nenhum arrumador intonso e
semidrogado ousou riscar-lhe o polimento
por falta de gorjeta. e nenhum
polícia de giro entalou o papelinho da multa
entre uma gaveta e o seu encaixe. a polícia
com este governo civilizou-se imenso:
passou a saber o que é uma cómoda d. josé,
a não interferir na decoração dos exteriores urbanos
e sobretudo a compreender que uma peça de pau-santo,
volumosamente acetinada, bem brunida e sem rodas,
não pode deslocar-se facilmente para a berma,
onde aliás ficaria muito melhor.

mas a situação era estranha, mesmo
muito estranha: ainda se se tratasse
de uma credência chippendale no terreiro do
paço, de uma aparador d. maria na praça
do município, até de uma chaise-longue,
de uma chaise-longue
com madame récamier ou sem madame récamier
refestelada em rosa e cinza,
na estufa fria, as coisas seriam de uma evidência
bem mais clara, aliás, basta pensar que a estufa
fria tem luminosidades vegetais e sombras
pardas e castanhas pondo malhas
imponderáveis na atmosfera,
como no quadro de jaques-louis david, deixando
intacta a personagem.
mas na verdade,
nem sequer estava ali um contador com os seus
caprichos de ebúrneo entalhe e enxamblamento,
testemunho indo-português de um passado
mais recuado e convenhamos, bem mais glorioso,
enfim, nenhuma coisa de plausível normalidade,
digamos, médio-burguesa e ornamental.

por isso um jornalista dos mais típicos, sem
aliás contestar a situação, aliás benéfica para as avenidas
novas e ipso facto para a cidade, lembrou-se
de telefonar a josé-augusto frança perguntando
que razões haveria
para aquela insólita presença. “ - muito simples”, respondeu
o mestre, cruzando a cintilação racional
da arquitectura iluminista e a sua própria trajectória
pelo surrealismo com um simpático sorriso:
“fica provado que,
mesmo fora da baixa,
lisboa é pombalina”.

(Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000, Poemas com Pessoas)

2 comentários:

Pandora disse...

Foi mesmo uma surpresa!! Um belo brinde, de facto. Quanto à fava... não há comentário!

Anónimo disse...

NOBEL PARA ELE!!!