7.2.07

BRINDE


Mitologia

Os deuses, noutros tempos, eram nossos
Porque entre nós amavam. Afrodite
Ao pastor se entregava sob os ramos
Que os ciúmes de Hefesto iludiam.

Da plumagem do cisne as mãos de Leda,
O seu peito mortal, o seu regaço,
A semente de Zeus, dóceis, colhiam.

Entre o céu e a terra, presidindo
Aos amores de humanos e divinos,
O sorriso de Apolo refulgia.

Quando castos os deuses se tornaram,
O grande Pã morreu, e órfãos dele,
Os homens não souberam e pecaram.

(José Saramago, Os Poemas Possíveis)





FAVA


aquiles e pentesileia

o filme desdobra-se entre o relâmpago da morte
e o sussurro do mar da cor do vinho.
talvez seja o instante da paixão que sangra no destino
e sempre nele as vozes se entrelaçam.

aquiles e pentesileia comandam gangs rivais
nas suas harley davidson reluzentes, vestidos
de couro preto e capacetes de viseira.
empinam as motos ao longo das dunas ondulantes

como cavalos tresloucados entre os sons
pesados dos metais, resfolegando.
ah, como se ameaçam de morte, enquanto
o mar se torna cor de tinta e eles rasgam noite

no eriçar dos faróis, no lampejar dos cromados,
nos surdos impropérios a desoras.
traz os ventos cruéis e sacudidos
o ronco musculado dos motores,

no cheiro a gasolina. Os olhos traçam
a fria precisão da trajectória. é quando
aquiles derruba pentesileia, esfaqueando-a
com um raio de lua na navalha.

um rap sacode o coração oculto
da treva nos pinhais. uivam ao longe
sereias da polícia e ambulâncias.
as amazonas estão petrificadas.

desmontam todos e aquiles aproxima-se
e num esgar de escárnio arranca o capacete
ao corpo inerte envolto em seus gemidos,
para lhe ver a face, e um e outro

então se reconhecem de repente,
ele e pentesileia, lá onde se misturam
o sangue e a areia grossa das derrapagens.
é quando a dor dos cactos se recorta

nas pedras do silêncio. agora a lua
impassível desinventa-os na berma
e eles beijam-se transtornadamente
entre as duas e as três da madrugada,

súbitos e devorantes, numa aurora
de luto e solidão. Porque eu os vi,
ainda os vejo no esvoaçar das luzes
pardas do fim da noite e as dunas se encrespavam.

a morte lambe os ferros retorcidos,
sorvendo gota a gota a cor do rosto,
mas tentam dilatar cada segundo.
porque os vejo quando o tempo e o espaço

se condoem na sua curvatura e são
um espasmo apenas de memória e música,
de cinza e de soluços lancinantes,
de apertos no coração e vozes apagadas,

porque deixam de ser no momento em que estão
a ser o que os transforma, refaz, identifica,
espelham-se nos olhos um do outro
e assim inventam uma outra eternidade.

(Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000)
















Penthesilea, Peter Stein

3 comentários:

Susana Alves disse...

Não, este blog não é para ser uma crítica cerrada à poesia de VGM. Eu sei que já estou a abusar da paciência, mas a verdade é que, para hoje, não consegui encontrar nenhuma fava plenamente digna do nome. Logo, lá tive de recorrer novamente a esse autêntico manancial de poesia inspirada… Sinceramente não tenho nada contra o senhor. Na verdade, a sua poesia diverte-me. Se calhar até gosto e ainda não dei por isso! Contudo hoje a fava não é fava na sua totalidade. Quero eu dizer com isto que, para mim, este poema termina num tom poeticamente belo. Mas porquê? Porque é que ainda teima em introduzir toda uma parafernália motoqueira, que até deixa as próprias amazonas petrificadas? Sinceramente não estou habituada a ver um tema clássico tratado assim. Talvez por isso também não achei assim tão genial a recriação d’ O Crime do Padre Amaro no cinema português.

Ricardo disse...

Aquiles e Pentesileia, esses nossos conhecidos... Mas olha que o VGM ganhou um prémio pela sua obra (Prémio Vergílio Ferreira 2007 - e repara que já é o de 2007, ainda que o ano só tenha um mês e 7 dias).

Anónimo disse...

O recurso constante à obra de VGM, ainda que em busca de belas favas, pode ser realmente um sinal de que afinal a sua obra te agrada.

Quanto a Saramago... não aprecio propriamente a forma como escreve narrativa, mas rendo-me ao encanto deste poema que é realmente um brinde delicioso.