13.1.07


BRINDE


Padrão

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

(Fernando Pessoa, Mensagem)





FAVA


A menstruação quando na cidade passava
o ar. As raparigas respirando,
comendo figos - e a menstruação quando na cidade
corria o tempo pelo ar.
Eram cravos na neve. As raparigas
riam, gritavam - e as figueiras soprando de dentro
os figos, com seus pulmões de esponja
branca. E as raparigas
comiam cravos pelo ar.
E elas riam na neve e gritavam: era
o tempo da menstruação.

As maçãs resvalavam na casa.
Alguém falava: neve. A noite vinha
partir a cabeça das estátuas, e as maçãs
resvalavam no telhado – alguém
falava: sangue.
Na casa, elas riam - e a menstruação
corria pelas cavernas brancas das esponjas,
e partiam-se as cabeças das estátuas.
Cravos - era alguém que falava assim.
E as raparigas respirando, comendo
figos na neve.
Alguém falava: maçãs. E era o tempo.

O sangue escorria dos pescoços de granito,
a criança abatia a boca negra
sobre a neve nos figos - e elas gritavam
na sombra da casa.
Alguém falava: sangue, tempo.

As figueiras sopravam no ar que
corria, as máquinas amavam. E um peixe
percorrendo, como uma antiga palavra
sensível, a página desse amor.
E alguém falava: é a neve.
As raparigas riam dentro da menstruação,
comendo neve. As cabeças das
estátuas estavam cheias de cravos,
e as crianças abatiam a boca negra sobre
os gritos. A noite vinha pelo ar,
na sombra resvalavam as maçãs.
E era o tempo.
E elas riam no ar, comendo
a noite,
alimentando-se de figos e de neve.
E alguém falava: crianças.
E a menstruação escorria em silêncio –
na noite, na neve –
espremida das esponjas brancas, lá na noite
das raparigas
que riam na sombra da casa, resvalando,
comendo cravos. E alguém falava:
é um peixe percorrendo a página de um amor
antigo. E as raparigas
gritavam.

As vacas então espreitando,
e nos focinhos consumia-se o lume em silêncio.
Pelas janelas os violinos
passavam pelo ar. E a menstruação nas raparigas
escorria pela sombra, e elas
gritavam e comiam areia. Alguém falava:
fogo. E as vacas passavam pelos violinos.
E as janelas em silêncio escorriam
o seu fogo. E as admiráveis
raparigas cantavam a sua canção, como
uma palavra antiga escorrendo
numa página pela neve,
coroada de figos. E no fogo as crianças
eram tocadas pelo tempo da menstruação.

Alimentavam-se apenas de figos e de areia.
E pelo tempo fora,
riam - e a neve cobria a sua página de tempo,
e as vacas resvalavam na sombra.
Em silêncio o seu lume escorria das esponjas.
Partiam-se as cabeças dos violinos.
As raparigas, cantando as suas crianças,
comiam figos.
A noite comia areia.
E eram cravos nas cavernas brancas.
Menstruação - falava alguém. O ar passava –
e pela noite, em silêncio,

a menstruação escorria pela neve.

(Herberto Helder, A Máquina Lírica, 1964)

4 comentários:

Susana Alves disse...

Sim, a poesia é uma questão de gosto e de sensiblidade, tal como a pintura, mas, de facto, continuo a preferir o surrealismo apenas no s quadros do Dalí e de Magritte. Não sou pudica de forma alguma, mas acho que há poemas que conseguem lidar com o erotismo, e até mesmo com algo mais explícito, de forma muito mais interessante. Tenho a certeza, "disse-me certo passarinho do mundo editorial", que, quando ler Bocage, terei um bom exemplo disso.
Mas como já concordámos, é uma questão de gosto.
(hum...quando o almoço é favas, na cantina, eu até gosto!... ironias ;)

Ricardo disse...

Brutal, esse poema-fava.

Manuel disse...

Favas com chouriço e Herberto Helder parece-me bem. Mas um de cada vez...
´
Mas é como dizes, Herberto Helder sabia exacta mente o que estava a fazer quando no primeiro verso de um poema colocava a "menstruação".
E Pessoa também quando emulava de forma tão explícita Camões.

Grande beijinho para ti Susana.

lisa disse...

Uhmmmm adoro favas...
Deixo um beijo.