27.3.07




BRINDE


Canção

Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!

Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De não a mostrar a ninguém!

(Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio 1914 – 1935)





FAVA




Ah!... Que pena!... A promoção do café queimado já deve ter acabado...

23.3.07


(La persistencia de la memoria, Salvador Dalí, 1931,
óleo sobre tela, Museu de Arte Moderna, Nova Iorque)


BRINDE


(…)
Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preenche todas as tuas horas! Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguirás depender menos do dia de amanhã. De adiamento em adiamento, a vida vai-se passando.
Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso. (…)

(Séneca, Cartas a Lucílio, I, 1)





FAVA


Arqueologia História Possível

condenado das leis e sem
outra defesa que os lábios emudeceu subitamente.
vendido escravo pró Brasil, o Pe. A.V.
o iluminou na fé cristã & misericórdia.
José Ignacio Pombo: injusto también y bárbaro el derecho
que se cobra en cada venta de los escravos.
Es un derecho sobre los hombres.
Mas guardou (hoje o sabemos) crenças
selvagens & a impiedade natural das origens,
alheio à salvação espiritual e progresso na via do culto.
y él grava también
sobre la agricultura,
os ombros tremiam-lhe por dentro devagar. Fugido
em novembro dois, de 1804
& entregue a estas autoridades cinco meses passados
& cortadas as mãos em culpa de furto,
morte, e hábitos (dizem) viciosos que uma missão
não extirpou completamente,
habitava em comunhão carnal contra natura,
adorando ídolos, dado a bruxedo & feitiçaria.
Los 38800 pesos producto de novillos, y
mulas vendidas en Jamayca, reducido a
negros comprándolos a 215 pesos
dan…………………………….152
Agravado de conhecedor dos princípios morais
& catecismo, & civilização, & instruído
no conhecimento da língua e costumes,
ajudado que fora pelo Pe. A.V. e outros
no caminha da Redempção;
será obligación precisa,
y personal de los Curas, aplicar todos los dias festivos
la Misa, por el pueblo, explicarle el evangeglio
antes de esta, y la doctrina cristiana por la tarde
& com reconforto das unções Xtãs
foi decepado em Abril 20, de 1805 depois
de lhe cortadas as regiões
por exemplo maior que guardem
as populações & extirpe costumes bárbaros
& incitamento à fuga.
(tremiam-lhe
os ombros ao de leve, por dentro.
Levava no peito uma medalha redonda de cobre;
ferido nas costas de uma bala rés-vés.
Estando o sol mto forte & o tempo húmido
apodreceu rapidamente o corpo).
Por derechos de marca de 263 negros
a 40 pesos cada uno…………10520.
Por 6% de muertos, y gastos sobre
los 71070 pesos en total……4260.
Producto líquido de los negros………56230.
Tremiam-lhe os ombros porque tinha medo
& sinais das estrelas mau presságio, & vira
mortos os companheiros antes de ser preso,
& estando sozinho
lhe parecia a morte mto difícil.
(ao de leve, como
por dentro. E ao ser castrado
abriu a boca como se falando, como
se fora gritar, mas não se lhe ouviu voz,
enquanto cerrava os olhos %& uma lágrima
escura lhe escorria o suor dos lábios)
Logramos la fortuna
de tener un Soberano,
Padre verdadero
y amante de sus vasallos,
foi a enterrar no campo maior por
despesa ordinária,
(ao de leve)
& os filhos, que tivera, entregues
ao cuidado de seu legítimo
proprietário.
Si a estos se agregan los derechos de alcabala de venta, y
reventa en estos negros; el aumento de frutos, y
consumos, que dan, subirán mucho las utilidades, que produce
esta negociación, al Rey, a los interesados y a la Província.

(António Franco Alexandre, Poemas)

17.3.07




BRINDE


O Noivado do Sepulcro

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

(Soares dos Passos, O Noivado do Sepulcro)





FAVA


Das Coisas que Competem aos Poetas

Nas terras onde os sinos andam pelas ruas
há horas surdas sós e sem cuidados
há mar condicionado ao possível verão
e vendem-se manhãs e mães por três ideias
Nas terras onde a música é o fogo de artifício
a camioneta curva a carga sob os plátanos
e à sombra dos lacrimejantes carros
o gato dorme a trepadeira sobe
o soba grita nunca ninguém sabe
a erva cresce e as crianças morrem
o mar aceita chão a mão do sol
Que plural deplorável o da magna agência mogno
E nas tílias há riscos dos vestidos de retintas raparigas
e o dente resistente número quarenta cheira a pepsodent

(Ruy Belo, Todos os Poemas)

13.3.07




BRINDE


(…)
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
(…)

(Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos, A Espantosa realidade das coisas)





FAVA


Um Prato de Sopa

Um prato de sopa um humilde prato de sopa
comovo-me ao vê-lo no dia de festa
e entro dentro da sopa
e sou comido por mim próprio com lágrimas nos olhos

(Ruy Belo, Todos os Poemas)

7.3.07



BRINDE


Navio Naufragado

Vinha dum mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves de cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos dos videntes.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I)





FAVA


Tríptico Nómada

III — Veneza, Travessia

porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
suba a cà foscari! os dentes
ácidos de sementes quebradas, il manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros. dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios. dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um resto de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/ spaghetti.
mrs. stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa no pássaro. miragem. quase noite.
vago, de hashish, o acre
minuto de falar. dizia, «ninguém,
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece, dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento. a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas. Invento. na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. in
vento. manhãs, quando se parte, de dentro
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue,
& as mãos espalhavam a pele, cobriam
cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia a bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia, «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada. e por dentro
da luz, a seiva do calcário. miragem. invento.
o sol partido em dois. azul. e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo; dizia «o mar,
algures os astros,
& a boca amealhava o ouro ardido.
invento. o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas. horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
uma manhã, invento, dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos,
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,
& os aviões roncavam sobre a areia.
subindo o céu de vidro,
a casa desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marcos.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas. um fio cortado a vento.
inclinado nos olhos, olhava. inclinado nas unhas,
olhava, dizia «amanhece,
porque amanhecia.

(António Franco Alexandre, Poemas)

3.3.07



BRINDE


Paisagem

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I)





FAVA


Tríptico Nómada

II – Paris, Sumário

1
paris, o ar, a traqueia
vertida,
dormir em pé nos bancos
(lénine) do parque ratazana
: dormir pelo sofá
(freud) do Hotel do Brasil ao 6°
andar sem as-
censor
de olhar tão lentamente a pedra, o rio, a folha,
que o fio ao dissolver-se trans
pareça
a pura forma de ar, íris, parure

2
paris, o desemprego. açorda de gente em pasmo,
cenoura matinal & mal cozida.
acertar a samarra ao apito do campo
(campo)
onde bois, esterco, o ventre hospitaleiro,
a machada de cobre à entrada das alfândegas.
passo a mão no teu rosto repensando
que nos resta comer a mão do céu
ou, microscópica, a vaca do deleuze.

3
paris, astrologia. antes da lei: a regra
de estar juntos no mar interno à veia:
diz-se (lei
bniz) do compossível.
sofre, traqueia, o golpe
das dedadas no chumbo:
esperando Saturno no quadrante de Vé
nus.

4
volta, paris, à terra prometida: jerus
além de garra
fão & diner’s club:
que o fio ao dividir-se
transpareça
em sua sombra a pedra, a folha,
o rio.

5
paris, bosque de vin
scènes dez da manhã:
de tal i qual no brr
aço, & no pinheiro
cartazes délecê.

6
asa sem paz (aro), migrante: de empire
state no bolso azul de cheviote,
édipo duro dura, assobiando
madra-goa em chicago, bar-d(o)
e máfia.

paris, ocasional: pele da pele, e-
terna, acaso um salto:
a dança: íris de riso, um rio.

(António Franco Alexandre, Poemas)