27.1.07

BRINDE… (…a dobrar: as mulheres de Cesário)


Frígida

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.

Admiro-a. A sua longa e plácida estatura
Expõe a majestade austera dos Invernos.
Não cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.

Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,
Numa das mãos franzindo um lenço de cambraia!...
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!

Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei duma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!

Pudesse-me eu prostrar, num meditado impulso,
Ó gélida mulher bizarramente estranha,
E trémulo depor os lábios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!...

Cintila ao seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo, a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jibóias
E a marcha demorada e muda dum fantasma.

Metálica visão que Charles Baudelaire
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Permita que eu lhe adule a distinção que fere,
As curvas da magreza e o lustre dos adornos!

Desliza como um astro, um astro que declina;
Tão descansada e firme é que me desvaria,
E tem a lentidão duma corveta fina
Que nobremente vá num mar de calmaria.

Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!

O seu vagar oculta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.

Porém, não arderei aos seus contactos frios,
E não me enroscará nos serpentinos braços:
Receio suportar febrões e calafrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.

E se uma vez me abrisse o colo transparente,
E me osculasse, enfim, flexível e submissa,
Eu julgaria ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!



Lúbrica

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um papel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

(Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde)





FAVA












Não faltará aqui uma vírgula no slogan, entre o não e o obrigada? Ou este cartaz também é, de certa forma, a favor do sim?

23.1.07














BRINDE


Sobre a areia os vestígios deixados pelas ondas agrestes...

Conchas partidas e ocas,

Búzios de curvas solitários,

Estrelas do mar vermelhas e partidas,

Pedras coloridas e multiformes.

São como pegadas difusas a caminho do mar, sem maré que as leve.


(Ariadne, 04.02.2006.
Porque alguns poetas desconhecidos merecem mesmo ser lidos...)





FAVA


aliás: uma homenagem

aliás, estava uma cómoda d. josé mal estacionada
numa paragem de autocarro
das avenidas novas. os táxis, os automóveis particulares,
os próprios autocarros, desviavam-se respeitosamente
do abaulado objecto. as pessoas não ligavam
grande importância àquilo.
nenhum arrumador intonso e
semidrogado ousou riscar-lhe o polimento
por falta de gorjeta. e nenhum
polícia de giro entalou o papelinho da multa
entre uma gaveta e o seu encaixe. a polícia
com este governo civilizou-se imenso:
passou a saber o que é uma cómoda d. josé,
a não interferir na decoração dos exteriores urbanos
e sobretudo a compreender que uma peça de pau-santo,
volumosamente acetinada, bem brunida e sem rodas,
não pode deslocar-se facilmente para a berma,
onde aliás ficaria muito melhor.

mas a situação era estranha, mesmo
muito estranha: ainda se se tratasse
de uma credência chippendale no terreiro do
paço, de uma aparador d. maria na praça
do município, até de uma chaise-longue,
de uma chaise-longue
com madame récamier ou sem madame récamier
refestelada em rosa e cinza,
na estufa fria, as coisas seriam de uma evidência
bem mais clara, aliás, basta pensar que a estufa
fria tem luminosidades vegetais e sombras
pardas e castanhas pondo malhas
imponderáveis na atmosfera,
como no quadro de jaques-louis david, deixando
intacta a personagem.
mas na verdade,
nem sequer estava ali um contador com os seus
caprichos de ebúrneo entalhe e enxamblamento,
testemunho indo-português de um passado
mais recuado e convenhamos, bem mais glorioso,
enfim, nenhuma coisa de plausível normalidade,
digamos, médio-burguesa e ornamental.

por isso um jornalista dos mais típicos, sem
aliás contestar a situação, aliás benéfica para as avenidas
novas e ipso facto para a cidade, lembrou-se
de telefonar a josé-augusto frança perguntando
que razões haveria
para aquela insólita presença. “ - muito simples”, respondeu
o mestre, cruzando a cintilação racional
da arquitectura iluminista e a sua própria trajectória
pelo surrealismo com um simpático sorriso:
“fica provado que,
mesmo fora da baixa,
lisboa é pombalina”.

(Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000, Poemas com Pessoas)

17.1.07


BRINDE


Cristo-Báquico

Nasceu na terra como as fontes
misturado com os animais
que irreprimíveis pelos montes
se dão nas luas casuais.

Do bicho à boca
da boca à fome
dos animais que os bichos comem,
subiu mais alto. Até ao homem
com fome e sede no seu caminho.
E ele era o pão. E ele era o vinho.
Porque era a taça servindo o sangue
que lhe batia no coração.

Da sua carne brotou
em flor Maria Madalena
e amando-a nela se mostrou
ele mesmo em beleza de fêmea.

A impiedade o esmagou
com o peso da divindade;
Preço que aos vendilhões pagou
para ser príncipe de outra verdade.

Os espinhos da rosa mais nocturna
em seu corpo de lírio se cravaram.
E os dedos da estrela mais soturna
a fronte pura lhe enodoaram.
Mas espinhos e dedos perfumou
com o cheiro que da terra trazia
porque na carne crucificada
era Diónisos que ria.

(Natália Correia, Poemas, 1955)





FAVA


Cópula

No prado, onde as vacas, imóveis,
esperam a passagem do comboio, ouve-se um ruído
de ramagens fustigadas pelo vento. Não sei se
é o outono que chega, ou se o verão ainda resiste
à chegada da breve estação. No entanto,
o comboio demora-se; e a vaca que não quis
esperar parou no meio da linha, com uma raiz
metafísica que se meteu na terra e a prendeu, impedin-
do-a de fugir à investida da locomotiva. (O
resultado, meses depois, foi um bezerro
a vapor).

(Nuno Júdice, A Fonte da Vida, 1997)

13.1.07


BRINDE


Padrão

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

(Fernando Pessoa, Mensagem)





FAVA


A menstruação quando na cidade passava
o ar. As raparigas respirando,
comendo figos - e a menstruação quando na cidade
corria o tempo pelo ar.
Eram cravos na neve. As raparigas
riam, gritavam - e as figueiras soprando de dentro
os figos, com seus pulmões de esponja
branca. E as raparigas
comiam cravos pelo ar.
E elas riam na neve e gritavam: era
o tempo da menstruação.

As maçãs resvalavam na casa.
Alguém falava: neve. A noite vinha
partir a cabeça das estátuas, e as maçãs
resvalavam no telhado – alguém
falava: sangue.
Na casa, elas riam - e a menstruação
corria pelas cavernas brancas das esponjas,
e partiam-se as cabeças das estátuas.
Cravos - era alguém que falava assim.
E as raparigas respirando, comendo
figos na neve.
Alguém falava: maçãs. E era o tempo.

O sangue escorria dos pescoços de granito,
a criança abatia a boca negra
sobre a neve nos figos - e elas gritavam
na sombra da casa.
Alguém falava: sangue, tempo.

As figueiras sopravam no ar que
corria, as máquinas amavam. E um peixe
percorrendo, como uma antiga palavra
sensível, a página desse amor.
E alguém falava: é a neve.
As raparigas riam dentro da menstruação,
comendo neve. As cabeças das
estátuas estavam cheias de cravos,
e as crianças abatiam a boca negra sobre
os gritos. A noite vinha pelo ar,
na sombra resvalavam as maçãs.
E era o tempo.
E elas riam no ar, comendo
a noite,
alimentando-se de figos e de neve.
E alguém falava: crianças.
E a menstruação escorria em silêncio –
na noite, na neve –
espremida das esponjas brancas, lá na noite
das raparigas
que riam na sombra da casa, resvalando,
comendo cravos. E alguém falava:
é um peixe percorrendo a página de um amor
antigo. E as raparigas
gritavam.

As vacas então espreitando,
e nos focinhos consumia-se o lume em silêncio.
Pelas janelas os violinos
passavam pelo ar. E a menstruação nas raparigas
escorria pela sombra, e elas
gritavam e comiam areia. Alguém falava:
fogo. E as vacas passavam pelos violinos.
E as janelas em silêncio escorriam
o seu fogo. E as admiráveis
raparigas cantavam a sua canção, como
uma palavra antiga escorrendo
numa página pela neve,
coroada de figos. E no fogo as crianças
eram tocadas pelo tempo da menstruação.

Alimentavam-se apenas de figos e de areia.
E pelo tempo fora,
riam - e a neve cobria a sua página de tempo,
e as vacas resvalavam na sombra.
Em silêncio o seu lume escorria das esponjas.
Partiam-se as cabeças dos violinos.
As raparigas, cantando as suas crianças,
comiam figos.
A noite comia areia.
E eram cravos nas cavernas brancas.
Menstruação - falava alguém. O ar passava –
e pela noite, em silêncio,

a menstruação escorria pela neve.

(Herberto Helder, A Máquina Lírica, 1964)

7.1.07



BRINDE


Timeu - Imitando a figura do todo, que é redonda, prenderam os circuitos divinos, que são dois, dentro de um corpo esférico, aquele a que agora chamamos cabeça, que é a parte mais divina, que domina sobre todas as partes que há em nós; e à qual os deuses deram a totalidade do corpo, como seu servo, unindo-a a ele, prevendo que ela participasse em todos os movimentos que viesse a haver. E assim, a fim de que não andasse a rolar sobre a terra, que está cheia de elevações e depressões de todo o género, com dificuldade em trepar a umas e em sair de outras, deram-lhe o corpo como veículo e meio de adequada deslocação. Daí que o corpo se tenha tornado comprido, tendo crescido nele quatro membros extensíveis e flexíveis, produzidos pelo deus com vista à deslocação; por forma a que, servindo-se deles para agarrar e se apoiar, se lhe tornasse possível deslocar-se por toda a parte, transportando ao alto a morada daquilo que há em nós de mais divino e sagrado.

(Platão, Timeu, 44d-e;
trad. Maria José Figueiredo, Instituto Piaget, 2004)






FAVA


Como se uma estrela hidráulica arrebatada das poças,
Tu sim deslumbras, Por coroação:
por regiões activas de levantamento:
por azougue da cabeça,
Brilhas pela testa acima,
Ceptro: potência – ah sempre que o chão crepita
dos charcos de ouro,
E no corpo trancado a veias
e nervos: o sangue que se afunda e faz tremer
tudo, Tocas
com um arrepio de unha a unha
o mundo, Pontada
que te abre e aumenta
ou
- onde se um troço dessa massa
intestina: e como respirada: às queimaduras
primitivas – Boca:
sexo: viveza
das tripas: uma glândula que te move
ao centro, Amadureces como um ovo,
Na traça carnal: todo
com um golpe com muita força para dentro

(Herberto Helder, A cabeça entre as mãos, 1982)

3.1.07



BRINDE

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes,
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

(Ricardo Reis, Odes e outros poemas, 136, 14.2.1933)





FAVA

água do luso

em criança eu bebia água do luso,
quando não, “- só se bebe água fervida”,
recomendavam os meus pais. escuso
de misturar groselha hoje à bebida.

a garrafa de quarto era vendida
sem ter forma de rosca ou parafuso,
sem ser de frouxo plástico, polida,
de vidro grosso já com marcas de uso.

vejo um nítido foco no seu halo
Intenso e luminoso e o copo de água
sobre o tampo da mesa, concentrando

algum raio de sol a atravessá-lo
como lente de aumento, há muito. trago-a
a queimar o papel, de vez em quando.

(Vasco Graça Moura, Poesia 1997 - 2000)